Por Mariana Baltar

Ao pensar na obra de Pedro Almodóvar raramente lembramos de A Flor do Meu Segredo. Ou se lembramos, a lembrança vem por último, quase invadindo a consagrada lista que certamente começa com Mulheres à beira de um ataque de nervos e termina com Fale com ela. Pura injustiça!, me dei conta esses dias. Tudo começou com o excelente seminário Recorrências na obra de Pedro Almodóvar, ministrado pelo Prof. Christopher Laferl que Tunico Amâncio e eu organizamos na UFF (uma parceria dos departamentos de Cinema e Vídeo e Estudos de Mídia)

Nas três palestras, o professor comentava sobre as recorrências temáticas, a auto referencialidade narradora, a paixão pela música massiva latina e, diria, mais que tudo o uso apaixonado do excesso. A forma como as narrativas de Almodóvar usam a música, as imagens saturadas (de cor e de símbolos) para presentificar e sumarizar estados emocionais e momentos chave na trajetória dos personagens e do filme. Tudo é colocado para a imediata compreensão (apreensão, melhor dizendo) do espectador. Apreensão passional que se transmuta em entendimento do fluxo narrativo. Modo de excesso em pleno funcionamento, arrebatando e engajando o espectador.
Em A Flor do Meu Segredo o excesso aparece em cenas belíssimas, na incrível fotografia de Afonso Beato, fazendo quadros dentro de quadros que lembram muito filmes de Douglas Sirk. Abusando de espelhos, janelas e grades para retratar/presentificar visualmente todo o aprisionamento passional da personagem e sua gradativa auto libertação e transmutação. uma novela de amor reforçada pela mise-en-scene a lá Sirk, pelas canções latinas – especialmente Bola de Nieve cantando Dolor e vida e pelos personagens e procedimentos típicos de Almodóvar.
A música é narradora tanto quanto os quadros, como fica intensamente claro na sequência em que Leo, em seu desespero pós-tentativa de suicídio, encontra Angel em meio a euforia de uma manifestação de estudantes de medicina. Um longo tilt up faz a transição daquele espaço e tempo de dissonância (entre agitação externa e desespero interno) para outro tempo e espaço em que Leo, já na casa de Angel, começa a se reencontrar, aos poucos. Na transição, Dolor e vida, planos ponto-de-vista a olhar pela janela e o reflexo da personagem. Os movimentos da câmera seguem rigorosamente a cadência da canção, pois aqui e agora, no filme, é a música de Bola de Nieva comanda catárticamente, como deve ser toda boa canção popular.
Nesse filme, duas coisas se sobressaem: a preciosidade da fotografia (no que me pareceu um excesso alusivo aos clássicos do melodrama doméstico de Sirk) e a teia de referências à própria obra de Almodóvar. Além de ser o filme que tematiza a transição estética do diretor – na figura de Leo, uma escritora de novelas sentimentais que vai abandonando esse repertório kitch/massivo para uma escrita mais séria ainda que igualmente afetiva(caminho que me soa análogo a da própria cinematografia de Almodóvar)- ; é o filme que antecipa Volver na figura de “Câmara Frigorífica”, uma das tais novelas sérias que Leo quer escrever, cujo mote é exatamente o plot de Volver e que é rejeitada pelos editores por ser realidade demais.

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