Prescrições narrativas e pedagogia moralizante

Prescrições narrativas e pedagogia moralizante

Por Locus.
Imagem

Qualquer pessoa, independente de sua aquisição intelectual, consegue narrar e acompanhar narrativas de todos os estilos. O narrar parece congênito ao ser, tão natural quanto o impulso que nos conduz aos primeiros passos e tropeços. Somos educados através deste modo de expressão e isso nos compraz, mesmo que os temas relatados possam exceder o “limite do respeitável” (Williams). Quer dizer, até o velho “boi da cara preta que pega crianças que têm medo de careta” conserva em si um excesso narrativo, uma lógica que desafia a tradição realista.
Convocamos esta faculdade ao fabular qualquer evento banal de nossos dias através de um “olhar narrativizante” (Ricoeur) capaz de organizar e agenciar em atos e peripécias o que se sucedeu dentro de uma sequência lógica que comporta ações conectadas, motivações claras, tramas, unidades de ação etc. Algumas vezes, com o pretexto semi-aparente de demandar mais atenção, adicionamos outros elementos, valores, tons ou efeitos, exacerbando a realidade vivida; algo que de certa maneira pressupõe uma desorganização da lógica narrativa, ou seja, desvia-se das prescrições normativas que acompanham os inventos narrativos desde o tempo de Aristóteles.
Mas isso de maneira alguma invalida seu funcionamento. Estratégias narrativas que confrontam a normalidade podem estar comprometidas em construir um clímax sensacional e afetivo que gera prazer ao se “ver” aquela incoerência discursiva. Gêneros como o melodrama, o horror e a pornografia valem-se de excessos que muitas vezes burlam os valores de uma pedagogia moralizante – adquirida culturalmente através de hábitos de consumo de diversas narrativas. Este desvio se torna banal, não só no sentido de uma promoção negativa, mas como ranço do real.
Para problematizar conceitos da retórica do excesso e das prescrições narrativas clássicas, o NEX!!! continua suas atividades concentrando seus encontros no debate sobre teorias narrativas. O livro adotado para os próximos encontros foi ALTMAN, Rick. A theory of narrative. New York: Columbia University Press, 2008. Indagações sobre a definição de narrativa serão articuladas ao conceito de excesso para investigar algumas narrativas fílmicas contemporâneas que rompem com a tradição clássica ao oferecer um “espetáculo do corpo dado ver” em prol do “êxtase”.
O que é narrar? Como se conta sem dizer? Como se diz sem contar? O que é a presença excessiva nessas narrativas? Como a “mistura dos gêneros” pode ser uma formulação do excesso narrativo? O que é reiterado da tradição narrativa clássica? Como uma narrativa realista pode suportar excessos e manter-se fiel ao efeito de real que a singulariza? Por que o boi pega as crianças que têm medo de careta? Estas e outras questões irão balizar o trajeto de estudo do grupo.

Gêneros do corpo e as disciplinas de educação sentimental burguesa

Por Mariana Baltar

Em ” Notas sobre a cultura somática”, Jurandir Freire Costa vai reavaliando as crenças e o papel relegado ao corpo na educação sentimental burguesa, para então mapear as mudanças que constituem a contemporânea cultura e personalidades somáticas. Com base em Peter Gay e Norbert Elias, resume desse modo os conjuntos de disciplinas que normalizaram o corpo e seus sentidos no contexto moderno de construção do homem sentimental: “As disciplinas sexuais visavam a moderar os prazeres sensuais de modo a drená-los par ao sentimentalismo amoroso, o cuidado com a família ou a sublimação artístico-científica. As intelectuais buscavam adequar os sentidos e a motricidade às exigências da cultura erudita: ler em voz baixa e de forma correta, escrever bem (…).

As higiênicas tinham por objetivo adestrar a visão, a audição, o tato, o gosto e o olfato, de modo a despertar nos indivíduos desprezo ou repulsa pela sujeira, feiúra e grosseria dos corpos mal-educados.(…) Por fim, as disciplinas de apresentação socialou regras de etiqueta ensinavam aos indivíduos como se vestir, andar, sorrir, sentar, receber convidados, conversar, dançar, cantar, tocar nutrimentos musicais etc. a fim de que o ‘ berço’ dos bem-nascidos fosse evidente à primeira vista” (p.207).

Pensando na dupla dimensão da pedagogia das sensações, bem poderíamos notar como cada uma dessas disciplinas responde correlatamente a um gênero (do corpo) institucionalizado ao longo do projeto de modernidade. Assim, as disciplinas sexuais correlacionam-se ao domínio da pornografia; as intelectuais, ao realismo; as higiênicas, ao horror; e as de apresentação social, ao melodrama. Forças análogas que respondem a uma sensibilidade comum, colocando os gêneros como instrumentos do projeto de educação sentimental. Dispositivos de uma pedagogia das sensações que alimenta e orienta tal projeto.
Parece um caminho a ser traçado, que tem a imensa vantagem de incluir o domínio do realismo no universo sensório-sentimental da pedagogia das sensações. Vejamos onde isso vai dar.

Melodrama e Coutinho

Por Mariana Baltar

Em uma das críticas recentes sobre o novo filme de Eduardo Coutinho, Ricardo Calil decreta, como uma imensa novidade, que o documentarista é também o rei do melodrama.
Vale a pena conferir o que Calil coloca e mais especialmente o que o público comenta no blog.

Um comentário em particular me chamou atenção pois associava diretamente o melodrama ao poder de envolvimento da platéia, comentando os aplausos no final da sessão.

Calil considera melodrama em Coutinho filmes mais obviamente atravessados pelo melodramático: Edifício Master, Jogo de Cena e As Canções. Desde de 2007, no mínimo, ano em que defendi minha tese de doutorado Realidade Lacrimosa, canto essa pedra dos diálogos de outros filmes de Coutinho, e outros documentários contemporâneos, com o melodrama. Um diálogo rico em dimensões reflexivas tanto sobre o filme quanto, e sobretudo, sobre as formas de perceber o mundo dos personagens que se performam (lembremos aqui do conceito de performance do Goffman)para o documentarista. Na performance, expoem-se os modos de narrar-se a si mesmo, a dimensão auto-fabulativa que nos acomete, sempre, e em especial, quando somos convocados a contar nossa história.Nesse sentido, mais que nos filmes citados por Calil, lembro de Peões, onde a moral familiar e trabalhadora se apresenta melodramaticamente a cada depoimento em um jogo de espelhamento emotivo, identificatório entre os personagens e Lula. Mais especialmente, lembro dos trechos de Henok e de seu Antônio, onde ouvimos, a cada instante, Coutinho buscar na dimensão privada e familiar (a lembrança das esposas já falecidas)um trigger para a emoção, ligando assim, memória privada à memória coletiva, estabelecendo o engajamento passional entre obra e público.

“Isso aconteceu”, descrição e o efeito do real

Por Mariana Baltar

E nesse caminho, pensando a questão da descrição como central para a construção dos discursos (sejam estes excessivos ou realistas) trabalhamos dois textos do Barthes:

Efeito do real e O discurso da história;
 
De cara ele já nos propõe uma questão, que já estamos tateando a algum tempo em nossas reuniões: O que separa uma narração ficcional de uma narração do real? Seriam elas realmente distante e, portanto, facilmente distintas? E qual característica forjaria essa “separação”?
Dentro da retórica realista, o efeito de real é essencial para que se atinja o propósito de um discurso que pretende reproduzir a realidade. Daí a descrição é utilizada para inserir elementos e objetos que construam essa realidade, sem necessariamente dar/conter sentido- a descrição como vazio de sentido. No entanto, Barthes logo aponta a inconsistência de tal premissa: o que supostamente é apenas constatativo (descritivo), imprime no discurso, pois age nele como significante, a marca da ideologia, da autoridade do “ato de fala”.
A ilusão referencial (a ideia de “somos o real”/”isso aconteceu” ao qual discurso da história aspira e tenta construir através da descrição) , sustenta-se na ideia de que o referente, o real, não é significado pelo discurso; um referente onipotente que negaria significação.
Os detalhes, inseridos através da descrição, longe de serem vazios, indicam/geram leituras e/ou usos. Mesmo a “insignificância” tem seu significado.
Conversando chegamos duas formas de descrição que pretendemos analisar: uma a descrição adjetiva (clássica), da retórica do excesso, efeito de espetáculo/êxtase, que simboliza a moral oculta, satura e preenche; e a outra uma descrição substantiva (realista) que simboliza o efeito do real.
Outra questão: a Imagem é uma descrição ou uma narração? Ou seria ela ambas?
Propomos então um desafio para todos que queiram conosco embarcar nessa aventura:
– Onde está a descrição em um filme?
– O que é descrever em uma imagem/através de imagens e sons?
– O que caracterizaria uma descrição audiovisual de retórica realista? E a descrição de retórica excessiva, quais são suas marcas?
Coloco aqui, dois possíveis objetos de análise:
A abertura de True Blood, fortemente pautada em sensações
http://www.youtube.com/watch?v=vxINMuOgAu8
E a abertura da série inglesa Downton Abbey, na qual a função descritiva parece mais presente:
http://www.youtube.com/watch?v=3PNniUuVXGs
Podemos começar por eles, mas a ideia seria expandir a análise para filmes, principalmente os mais clássicos, e tentar construir respostas para as perguntas que colocamos.

Realistic Excessive Vision

Por Mariana Baltar

Nos últimos encontros temos nos dedicado à refletir sobre as tensões entre uma tradição realista e as matrizes do excesso. tensões de ordem narrativa, mas também de ordem de legitimidade na escala de valores e autorizações sócio-históricas da modernidade. E novamente, é Peter Brooks quem nos ajuda nesse caminho a ser trilhado. Engraçado (aliás, sintomático) que o mesmo autor que inspirou configurar categorias para enxergar o excesso no emaranhado da imaginação melodramática, se mostra como um instigante o caminho inicial para começar a dar conta desse vasto e impreciso mundo do realismo. Ou, como ele mesmo diz, da visão realista (seu livro tem como título Realist Vision).

Uma pista (que em minha tese de doutorado – Realidade Lacrimosa – já perseguia): as visões/imaginações realistas e melodramáticas não são tão polarizadas assim e ambas são formadoras do projeto de modernidade. e não é acaso que um mesmo elemento – com funções e procedimentos por vezes distintos – seja a marca narrativas destas duas imaginações: a descrição.

Perguntas que saltam: que distingue a descrição excessiva da descrição realista? Que vínculos – tão atávicos – se tecem entre a descrição como procedimento narrativo e centralidade da visualidade no projeto de modernidade (o tal Frenesi do Visível como nomeia Linda Williams)? Que relações se estabelecem entre a descrição e os procedimentos de simbolização? Como a descrição se comporta em narrativas tecidas em imagens e sons?

As perguntas crescem… e as pistas de respostas (ou mais problemas) parecem estar em Barthes (efeito de real e discurso da história), ainda no Brooks e … (complete os espaços…).

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