“Eita raça desunida
Feminismo não existe
Quando rola é uma pica”
O trecho acima é da última faixa do álbum Mulher Cromaqui, “Raça Desunida”, de Catarina. Uma coisa interessante de ser observada é que essa faixa foi vista por alguns jornalistas e blogueiros que a interpretaram como uma sátira as “então ditas feministas”. Um equívoco. Catarina rebateu a algumas críticas em seu próprio Facebook e em entrevistas que podem ser vistas online, mas vamos a análise da música em si.
Lipovetsky fala em um texto no seu livro “A terceira mulher: permanência e revolução do feminino”, sobre as diferenças que passam a surgir no “neofeminismo” por conta do “individualismo processualista”. Ou seja, enquanto ressalta que existe uma cultura da vitimização por parte de feministas norte americanas, que visam um maior controle público da vida privada, enchendo a sociedade de leis anti pornografia, assédio sexual, códigos comportamentais e de linguagem, também existe o feminismo europeu, mais prático e que dá a liberdade do convívio entre ambos os gêneros, sem sobreposições.
A preocupação mostrada por Lipovetsky é de que, o que ele chama de, “ultrafeminismo neoliberal” induza o fim do convívio entre gêneros ou a sua diminuição, já que ele se utiliza de meios legais para que aconteça uma repressão sexual. Leis que inicialmente, podem vir a evitar crimes repugnantes, mas que também podem inferiorizar a mulher e seus próprios desejos sexuais, já que essas “regras de bom convívio” têm raiz no puritanismo religioso. O pudor prezado pela sociedade americana, e, inevitavelmente, pelas feministas estadunidenses, é o mesmo pudor protestante que usa o sexo como ferramenta de poder, para oprimir o ser feminino. É contra isso que as ultrafeministas lutam, usando os meios legais, mas que acabam por ressaltar o discurso de opressão ao corpo feminino – quando lutam em favor de leis contra a pornografia, por exemplo.
Em contra partida, Gilles Lipovetsky aponta o lado das feministas europeias – cabe lembrar que o filósofo é francês – e que não concordam com as práticas das norte americanas. Ele afirma que tanto na França, quanto em outros países europeus a categorização do ser masculino como um inimigo nato e um agressor natural não é levado a sério. O que ocorre na Europa é uma busca da igualdade entre gêneros, mas sem a exclusão total dos “jogos de sedução”. A busca é do respeito pelo respeito democrático, e não pelo medo judicial. De fato, Lipovestsky faz a seguinte colocação: “O modelo europeu nada tem de saudosista, antes encarna a maneira pós-moderna de modificar as relações entre sexos sem fazer tábua rasa do passado.”
Essas duas formas de pensar são muito diferentes, quase opostas. Então, cabe fazer a pergunta, como serão as formas de feminismo nos países fora do eixo Estado Unidos – Europa? Como será o feminismo no Brasil? No meu olhar, Catarina mostra como essa questão é complexa e ambígua dentro do solo verde e amarelo. Com a música “Raça Desunida” ela mostra não somente como a mulher é retratada na sociedade e na mídia (“Mulher já nasce assim”), mas também mostra, no refrão, a desunião das mulheres, isso incluindo as feministas, quando o assunto vem a ser os seres do sexo masculino (“Quero o seu macho/ Quero o seu irmão/ Quero o seu pai me pagando uma pensão”). Essa desunião acontece por conta da diferença de detalhes ideológicos, gerando brigas que “enfraquecem o movimento”.
Portanto, é possível dizer que dentro do país temos uma divergência de ideologias no próprio movimento feminista. É claro que muitos podem considerar a visão de Lipovetsky ultrapassada por ser tão dicotômica, ou antiga pela época em que ele escreveu. No entanto, a visão não é desatualizada se formos pensar no movimento feminista atual, mesmo dentro do solo brasileiro. De uma forma, Catarina mostra essa dicotomia, sendo ela feminista ativista, ressaltando a diferença entre pensamentos que desunem uma “raça”.
Essa desunião é, em parte, o que contribui para o imaginário machista social que dita mulheres como megeras falsas, “amigas fura olho”, de forma naturalizada, porque “mulher já nasce assim” e que ainda estimula alguns discursos impregnados de puro preconceito e subjugamento do gênero (“Saímos da cozinha/ Começou a confusão”). A questão da naturalização do “dever” feminino e os problemas ligados a ela também é constatado por Lipovetsky, que afirma que isso seria um traço da primeira mulher (a mulher mais submissa e inferiorizada), mas que é imposto socialmente à terceira mulher (a mulher mais moderna, que conhece e conquista seu espaço, mesmo com dificuldades) como forma de “naturalizar” o espaço que, para o patriarcado, deve pertencer a ela.
“Raça Desunida” se faz como uma crítica a essa visão que a sociedade e a mídia veiculam da mulher, mas também a ideia que sustenta esse tipo de pensamento. As próprias mulheres, com suas pequenas divergências quanto a posição em que deveria ser colocado o portador do falo, entram em desentendimentos contornáveis, mas que se mostram impossíveis de resolver por limitações ideológicas e sociais. Lipovetsky e Catarina concordam nesse sentido. A igualdade ou a justiça deveriam ser procuradas antes do movimento se desintegrar.
“Ninguém nunca ganhará a Guerra dos Sexos porque existe muita confraternização com o inimigo.” (Henry Kissinger)
“Não é preciso ser anti-homem para ser pró-mulher.” (Jane Galvin Lewis)
“Existem poucos trabalhos que exigem possuir um pênis ou uma vagina. Todos os outros deveriam ser acessíveis a todos.” (Florynce Kennedy)