No dia 29 de Junho de 2013, a revista eletrônica famosa por seus “scoops” sensacionalistas Daily Mail, lançou um artigo sobre a apresentação de uma cantora com o título de: “Making a boob of herself! Amanda Palmer’s breast escapes her bra as she performs on stage at Glastonbury”, seguido por uma foto do peito “escapulido” no meio da performance.

Apenas para começar a discussão, podemos dizer que o Daily Mail cometeu dois equívocos básicos: o primeiro, falar de Amanda Palmer, artista que preza sua performance mais do que como ela, efetivamente, dá as caras em jornais e revistas. O segundo, falar do seio de Amanda Palmer, que resolveu aparecer, como sempre o faz — deixando, assim, qualquer novidade nessa informação como sendo apenas mais uma rotina dos shows de Palmer.

No entanto, a atitude sensacionalista da revista eletrônica não passou batida e, em minha opinião, esse foi terceiro erro do Daily Mail. Amanda está acostumada a comprar briga com gravadoras, veículos de mídia de massa e, até mesmo, com sua comunidade de fãs hipercríticos dentro da internet. Podemos dizer que nada disso, nem a mostra do seio, nem a briga por implicância, é uma novidade para o universo Amanda Palmer. Ela, prontamente, escreveu uma carta aberta em resposta — sendo tudo, menos afável — e a musicou, fazendo o que ela sabe fazer melhor: performando de forma chocante para olhos mais conservadores.

https://www.youtube.com/watch?v=RRWp4B0qsW8

Vamos a carta:

dear daily mail,
it has come to my recent attention
that me recent appearance at glastonbury festivals kindly received a mention
i was doing a number of things on that stage up to and including singing songs (like you do…)
but you chose to ignore that and instead you published a feature review of my boob

dear daily mail,
there’s a thing called a search engine: use it!
if you’d googled my tits in advance you’d have found that your photos are hardly exclusive
in addition you state that my breast had escaped from my bra like a thief on the run
you do you know that it wasn’t attempting to just take in the RARE british sun?

dear daily mail,
it’s so sad what you tabloids are doing
your focus on debasing women’s appearances ruins our species of humans
but a rag is a rag and far be it from me to go censoring anyone OH NO
it appears that my entire body is currently trying to escape this kimono….

dear daily mail,
you misogynist pile of twats
i’m tired of these baby bumps, vadge flashes, muffintops
where are the newsworthy COCKS?
if iggy or jagger or bowie go topless the news barely causes a ripple
blah blah blah feminist blah blah blah gender shit blah blah blah
OH MY GOD NIPPLE

dear daily mail,
you will never write about this night
i know that because i’ve addressed you directly i’ve made myself no fun to fight
but thanks to the internet people all over the world can enjoy this discourse
and commune with a roomful of people in london who aren’t drinking kool-aid like yours

and though there be millions of people who’ll accept the cultural bar where you have it at
there are plenty of others who’re perfectly willing to see breasts in their natural habitat

i keenly anticipate your highly literate coverage of upcoming tours

dear daily mail,
UP YOURS.

AFP

Poderíamos analisar trecho por trecho da música, mas vamos ao que mais interessa nessa coluna, a questão da disputa sobre o corpo. Judith Butler, em seu texto “Performative Acts and Gender Constitution: An Essay in Phenomenology” lembra-nos que o corpo é algo sexual e profere suas próprias experiências e significados. Ele é e representa tudo aquilo pelo que passou. Michel Foucault mostra no icônico “A Microfísica do Poder” que os corpos estão em disputa constante pelo poder de apenas ser, existir e sentir como bem entender. Tendo isso em mente, que o corpo é algo histórico e que está em uma constante batalha pela libertação, se lermos o texto da pesquisadora Paula Sibilia, “O Corpo Reinventado pela Imagem”, podemos entender um pouco porque o sensacionalismo no Daily Mail acontece ao entorno do seio de Amanda Palmer e porque a resposta da cantora é tão coerente.

Sibilia ressalva que o problema não é a nudez em si, mas quem “pode” ficar sem roupas. Usando uma icônica frase de Foucault, “Fique nu, mas seja magro, bonito, bronzeado”. A “nudez involuntária”; ou o flagra da calcinha, o flagra da sem calcinha, ou — nesse caso — o peito que escapole da roupa, são coisas não desejadas pela mídia sensacionalista. Aliás são até mesmo ridicularizadas pela mídia, como foi o teor da “reportagem” do Daily Mail. Ou seja, Palmer estaria de alguma forma provocando e incentivando uma forma de exposição que incomodou, por algum motivo, a revista eletrônica — sendo ela uma mídia com valores “tradicionais”. Mesmo Amanda sendo uma artista que já ficou nua em lugares como shows, passando por vídeo clipes e até no tapete vermelho.

Poderíamos expandir essa discussão que, parte do moralismo da mídia de massa, é um resultado de alguns discursos feitos pelas feministas puritanas norte americanas, e mostrado por Lipovetsky. A lógica da valorização do corpo feminino ao mantê-lo longe dos olhos públicos, que era um discurso das feministas anti pornografia, por exemplo, ainda é uma das falas reproduzidas, através de atos que poderiam ser chamados carinhosamente de “slut shaming”, por muitos meios de comunicação atuais, incluindo o Daily Mail ( essa revista “fascistinha”, como disse uma vez um amigo meu).

A resposta performativa de Amanda Palmer — incluindo a completa nudez ao final — é um bom “tapa na cara” pra muitos dos meios que consumimos e que controlam o corpo feminino visando a “moral dos bons costumes sociais”, mesmo que, como fala Paula Sibilia, esses mesmos meios idolatrem signos descendentes da pornografia. Um exemplo são as propagandas de lingerie, cerveja e carro, onde a mulher é tida extremamente sexualizada, quando não semi nua, mas ainda assim bem vista pela massa — afinal, ela está ali fazendo o seu papel de se mostrar para o masculino. Realmente é um convite a nudez, desde que seja mediada.

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