Tenho que confessar que relutei muito a escrever qualquer coisa sobre 50 Tons de Cinza. Não pelos motivos habituais que fazem algumas pessoas torcerem o nariz para os livros e o filme, a despeito de seu sucesso comercial. Não pela falsa vergonha moralista que levanta reações chocadas de algumas e alguns. Antes de mais nada, preciso dizer que nem a franca pornografia, nem o BDSM do livro me assustam, chocam ou revoltam. Sou desde há muitos anos, mesmo antes de me aventurar pelas pesquisas do excesso, uma ávida leitora dessa literatura popular pornográfica. E, tal como Beatriz Sarlo em seu ótimo livro dedicado a essas “novelas sentimentales” (sob o incrível título de El imperio de los sentimientos), acredito firmemente na importância dessa literatura na formação da moral, do desejo e da educação sentimental. Tais livros, que vem de uma linhagem muito antiga e que tem nas famosas séries Julia, Sabrina e Bianca sua vertente mais popular-massiva; são fundamentais e há muito fazem o gozo das mulheres, seu público mais fiel, tradicional e explicitamente demarcado. Por seu sucesso, penetração (sim, podem rir do duplo sentido!) e longevitude enquanto produto popular-massivo merecem ser pensados e considerados sem preconceitos hipócritas de ordem moral e/ou estética (que imputam um olhar de nojo que perpetua distinções de gosto e classe).

São textos que se estruturam numa lógica cultural fundamental da modernidade e que dizem respeito às replicações de fórmulas de apelo (até elas mesmas se reinventarem), às construções visuais e excessivas de pronta identificação e engajamento, ao melodrama subliminar que as embala e com isso nos embala enquanto leitores. Engajamento sensório-sentimental que leva à projeção empática e ao gozo, em exemplos claros de uma pedagogia das sensações que educa desejos e sentidos. Como todo fenômeno moderno, é extremamente ambivalente na sua ação moralizadora. E talvez,   por isso mesmo, merece mais ainda nosso olhar cuidadoso, despido de falso moralismo e criterioso na reflexão.julia, sabrina e bianca

Desde adolescente, leitora ávida de Julia, Sabrina e Bianca, nada disso me passava pela cabeça. Entrava no jogo pedagógico do sentimento e desejo. Hoje, sigo jogando esse jogo mas, talvez, de modo mais consciente, sabendo das armadilhas, me deliciando ainda que de modo reflexivo com elas. E é com esse saber/experiência acumulada que posso dizer que 50 Tons de Cinza (livro e filme) me dá muita preguiça. É uma péssima pornografia, que, para além do fato de em português ter sido muito mal traduzido, suas coreografias sexuais deixam muito a desejar. Claro que como fenômeno, o livro e filme não estão sozinhos. Fazem parte de um amplo e muito interessante movimento que faz com que algo que era marginal/alternativo dentro do próprio campo do pornográfico vá cada vez mais se mainstreamizando. O BDSM agora figura em muitas das obras desse vasto mundo da literatura popular pornográfica, sem contar no aumento de entradas de tags desse lifestyle (como gostam de ressaltar seus praticantes) em portais populares de conteúdo adulto. E, claro, como bom fenômeno ambivalente que é, essa assimilação se dá sob a égide de uma força moral que a torna aceitável. E essa força ainda é o contrato amoroso e heterossexual. Em todos os exemplos – do péssimo 50 Tons, aos razoáveis livros de Sylvia Day e, finalmente, aos incríveis livros de Christa Wick e Jordan Bell – o lifestyle BDSM se justifica pelo amor heterossexual em um franco e, sim importante!, ensinamento da condição consensual (força aqui nessa palavra) de uma relação e a centralidade do prazer partilhado. O que 50 Tons faz, e é por isso que me dá extrema preguiça; é misturar esses ensinamentos com coreografias sexuais pouco excitantes e imaginativas e com personagens que reiteram o pior do discurso individualista contemporâneo que valoriza o dinheiro e o consumo como signos de felicidade e plenitude. Acrescenta-se a isso o fato de que os livros e o filme em nada questionam padrões de corpo, etnia ou classe.

“Ah, mas você tá querendo demais, quer politizar a pornografia”, podem reclamar alguns. E sim, quero politizar a pornografia porque desde de há muito ela própria, enquanto mercado e enquanto campo cultural em disputa, se politiza.

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Chego então ao que interessa. Finalmente. Amigas e amigos, de uma ávida leitora para ávidxs leitores, editores, tradutores: Tem coisa melhor nesse mundo da literatura popular pornográfica! Melhor naquilo que ela se propõe ser – popular-massiva, sentimental, romântica, instigadora de desejos e prazeres. Autoras independentes – algumas com auto-financiamento – que além de coreografias sexuais melhores conseguem expressar de modo mais complexo o jogo consensual que envolve o BDSM. E de quebra ainda trazem heroínas que fogem dos padrões explorando um outro nicho que aos poucos tem se mainstreamizado (embora ainda não tenha chegado amplamente ao mundo do espetáculo cinematográfico e audiovisual): as BBW (ou Big Beautiful Woman, mulheres gordas, cheinhas, com curvas, voluptuosas e outras tantas palavras usadas no texto para ressaltar de modo apreciativo seus corpos). Nesse sentido, a série de livros Training her curves, de Christa Wick , e The Curvy Submissive, de Jordan Bell e a Curvy Love Series, de Aidy Award são ótimos exemplos. Não se enganem, os livros seguem justificando tudo em nome do contrato amoroso e heterossexual, com direito a final feliz e declarações de amor eterno e monogâmico, encenando de um modo ainda que enviesado os desejos de família burguesa. Mas o fazem usando mão do BDSM, de um desenho de heroína mais empoderada e autônoma e abusando explicitamente de números sexuais que fazem parte da agenda da pornografia feminista (como a exaltação do sexo oral na mulher como fonte de prazer compartilhado e que coloca o prazer feminino no centro da ação). Essas três séries são alguns dos exemplos para além dos tons de cinza.

No mais, praticamente a melhor coisa que já vi sobre o filme foram as 5 razões das atrizes pornô da internet para odiarem 50 Tons de Cinza:

http://www.funnyordie.com/videos/3bcd4d7524/5-reasons-pornstars-hate-50-shades-of-grey

“Um insulto a pornografia”, dizem as atrizes. Assino embaixo.

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