Ser sentimento e ser sensível

Ser sentimento e ser sensível

Por Mariana Baltar

Pensando alto enquanto retorno a História das Lágrimas de Anne Vincent-Buffault, antevejo o que poderíamos chamar de uma hierarquia do sensível estabelecida na passagem do século XVIII para o XIX. Personagens dessa hierarquia são, entre outros, Diderot e Senancour. Sobre esse último, a autora escreve: “fustigando severamente esta mania do sentimento, espécie de doença do fim do século XVIII, ele define-se claramente em um outro terreno. Ele diferencia aquilo que era frequentemente confundido, por exemplo em Diderot: a faculdade de enternecer-se e aquela de receber as sensações” (página 135). Ou seja, dissocia, eu diria, o sensível do sentimento, seccionando o lugar do sensível do excesso sentimental no século XIX. “O homem sensível deve preferir ao homem sentimental”, escreve Senancour. A partir daí, realmente uma peripécia na história das lágrimas; e essa personagem valorizada por ser pública, vistosa e ruidosa passa definitivamente a privada, contida e silenciosa. Acho que isso diz muito sobre o século XX, mas o que dirá sobre os tempos hipermodernos de hipertrofia espetaculosa do privado?

Gêneros do corpo e as disciplinas de educação sentimental burguesa

Por Mariana Baltar

Em ” Notas sobre a cultura somática”, Jurandir Freire Costa vai reavaliando as crenças e o papel relegado ao corpo na educação sentimental burguesa, para então mapear as mudanças que constituem a contemporânea cultura e personalidades somáticas. Com base em Peter Gay e Norbert Elias, resume desse modo os conjuntos de disciplinas que normalizaram o corpo e seus sentidos no contexto moderno de construção do homem sentimental: “As disciplinas sexuais visavam a moderar os prazeres sensuais de modo a drená-los par ao sentimentalismo amoroso, o cuidado com a família ou a sublimação artístico-científica. As intelectuais buscavam adequar os sentidos e a motricidade às exigências da cultura erudita: ler em voz baixa e de forma correta, escrever bem (…).

As higiênicas tinham por objetivo adestrar a visão, a audição, o tato, o gosto e o olfato, de modo a despertar nos indivíduos desprezo ou repulsa pela sujeira, feiúra e grosseria dos corpos mal-educados.(…) Por fim, as disciplinas de apresentação socialou regras de etiqueta ensinavam aos indivíduos como se vestir, andar, sorrir, sentar, receber convidados, conversar, dançar, cantar, tocar nutrimentos musicais etc. a fim de que o ‘ berço’ dos bem-nascidos fosse evidente à primeira vista” (p.207).

Pensando na dupla dimensão da pedagogia das sensações, bem poderíamos notar como cada uma dessas disciplinas responde correlatamente a um gênero (do corpo) institucionalizado ao longo do projeto de modernidade. Assim, as disciplinas sexuais correlacionam-se ao domínio da pornografia; as intelectuais, ao realismo; as higiênicas, ao horror; e as de apresentação social, ao melodrama. Forças análogas que respondem a uma sensibilidade comum, colocando os gêneros como instrumentos do projeto de educação sentimental. Dispositivos de uma pedagogia das sensações que alimenta e orienta tal projeto.
Parece um caminho a ser traçado, que tem a imensa vantagem de incluir o domínio do realismo no universo sensório-sentimental da pedagogia das sensações. Vejamos onde isso vai dar.

Pedagogia das sensações

Por Mariana Baltar

A noção de pedagogia das sensações procura dar conta das implicações (politico-culturais e narrativas) de discursos que parecem compartilhar entre si estratégias comuns vinculadas ao modo de excesso. Essa matriz comum garante uma relação com o público pautada no pathos e em uma lógica de engajamento sensório-sentimental.
O pressuposto (e proposta para reflexão) é que essa lógica sensório e sentimental é igualmente fundante do projeto de modernidade, o que resulta no impulso pedagogizante do sensacional, presentificado a partir do fio condutor do excesso (são narrativas, portanto, que tem traços em comum, a despeito das diferenças internas).
O excesso aparece como estratégia temática e estética no diálogo com o público, atuando através de uma lógica pautada no pathos. Mas ele é também elemento importante na esfera de “pedagogização” de uma lógica sensacional e sentimental que se expressa ao lidar, via formatos narrativos associados ao gosto popular (retomando aqui a matriz popular do excesso, conforme teoriza Jesús Martin-Barbero), com tensões e anseios da modernidade. De um lado, “ensinando/cristalizando” sobre a experiência da modernidade a partir de um sensacional, mobilizando o universo dos estímulos (na linha do que trabalha o Ben Singer, por exemplo, a partir do Simmel) e, de outro, “domesticando” o lugar do sensacional na modernidade (e ai, claro, bastante coerente com o tão apontado projeto moralizador dos “gêneros do corpo”).
No mergulho analítico e conceitual, partimos, a princípio, dos gêneros (entendendo este não como um conjunto de códigos estanques e imutáveis, mas seguindo a pista mais ampla de uma abordagem que Rick Altman nomeia como sintática/semântica/pragmática) definidos por Linda Williams como “gêneros do corpo” (a saber, o melodrama, a pornografia e o horror), mas reconhecemos que eles não estão sozinhos (poderiamos incluir o musical e certo tipo de comédia, por exemplo). Também entendemos que é preciso, para além do mergulho no universo genérico, cercar o conceito do excesso como elemento estilistico (tecido na narrativa) bem como matriz cultural.
O excesso é um conceito complexo e o NEX!!! – Nucleo de Estudos do Excesso nas Narrativas Audiovisuais tem se debatido sobre isso. Como matriz cultural, tem nos ajudado os trabalhos do Jesus Martin-Barbero, do Bakhtin e do Peter Burke (todos pelas leituras das estratégias e matrizes de uma cultura popular). Mas o nó aparece ao precisar o excesso como elemento estético (se me permite o uso do termo). Por enquanto, estamos apostando na leitura do excesso como uma “aglutinação” do espetáculo e do êxtase, onde, grosso modo:
* o primeiro coagula o universo moralizante da narrativa stricto senso (contruindo vetores de identificação, incorporando um impulso do realismo sem ser realista – para poder justamente sustentar o efeito pedagógico moralizante do engajamento passional proposto, por exemplo, no melodrama.
* o segundo condensa o universo do êxtase, entendido como intensidade, estímulos sensoriais, pulsação, choque. Uma matriz, diga-se de passagem, igualmente importante para certa tradição da vanguarda (penso na dos anos 1920, por exemplo, ou em certos filmes do Brakhage); e daí, o que distingue o extasiastico da vanguarda (uma face do excesso, sem dúvida) do Excesso dos “gêneros do corpo” talvez seja a ausência ou submissão da face do espetáculo.
É uma aposta não totalmente pacificada, pois, ainda me incomoda nela um certo binarismo que apaga a contradição constitutiva dessas narrativas do excesso. E acho que devemos é abraçar a ambivalência. Mas sigo com aposta, vejamos no que dá.
Lembro ainda que a ideia de uma pedagogia das sensações nasceu, ainda na época da minha tese, a partir dos diálogos com a Prof. Ana Lúcia Enne, que na época, junto com a Prof. Marialva Barbosa, trabalhava o universo do sensacionalismo (pensando este como inserido no fluxo do sensacional, ou seja, vinculado à matriz cultural popular).

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